sexta-feira, 22 de março de 2013

Reforma do CPC é vontade de criar totalitarismo judicial

Código novo

Graças à intervenção direta do nosso maior aliado, o professor doutor Ives Gandra da Silva Martins, junto ao relator-geral da Comissão Especial de Reforma do Código de Processo Civil, o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), ficou postergado de dezembro de 2012 para fevereiro de 2013 o trabalho dos 27 parlamentares que poderão mandar ao plenário da Câmara o projeto. Iniciado o ano legislativo, é hora de voltar a denunciar o autoritarismo que ronda a Justiça civil brasileira e reprisar em oito advertências as razões por que não podemos admitir a aprovação deste questionável projeto de CPC, agora sob a versão final do deputado paulista.

1ª advertência: Origem politicamente inadequada do projeto
O projeto de um novo CPC jamais deveria ter tido como casa iniciadora o Senado Federal, que representa os estados, mas sim a Câmara dos Deputados, que representa o povo brasileiro. A iniciativa senatorial torna a Câmara e o projeto reféns dos 81 senadores que poderão restabelecer – seja qual for o texto que aprovem os 513 deputados – o projeto originário do Senado, tão antidemocrático quanto imperfeito do ponto de vista técnico.


2ª advertência: Falta de tratamento democrático do projeto no próprio Senado
Nunca se viu, na história democrática brasileira, um projeto de código – tão grande quanto o de um CPC - ser aprovado em apenas seis meses, a toque de caixa, na calada da noite, por um Senado em final de legislatura e por meio da vergonhosa figura da votação simbólica. Apenas isto já deveria ter sido suficiente para que a Câmara tivesse interrompido a tramitação do novo CPC para começar tudo de novo em seu próprio e legítimo ventre legislativo e político.


3ª advertência: O Brasil não precisa de um novo CPC, mas de um choque de gestão no poder judiciário
A morosidade da Justiça brasileira não decorre das imperfeições do estatuto processual, mas da falta de uma boa infraestrutura administrativa do Poder Judiciário. O que precisamos é de vontade política e orçamentária para reformar a base operacional material da Justiça. O que precisamos é de informatização de todo o Judiciário. O que precisamos é de capacitação dos nossos servidores e gestão adequada dos nossos juízos e tribunais. O que precisamos em São Paulo - que responde por 20 dos quase 90 milhões de processos em tramitação no Brasil -, é o que o Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais já têm conseguido realizar: julgar uma apelação em menos de um ano! Não precisamos de um novo CPC para consertar a Justiça, mas de uma Justiça melhor para fazer o CPC funcionar a contento.


4ª advertência: Poder instrutório excessivo nas mãos da primeira instância é proposição autoritária e repugnante
Não é possível que alguém, em sã consciência, entenda que vale a pena sacrificar o sagrado direito de fazer provas em favor de uma suposta agilização da atividade jurisdicional. Parece coisa de processo de estado totalitário: 1. tirar o direito da parte de ouvir 3 testemunhas para cada fato; 2. retirar o direito de agravar de decisões que indeferem provas; 3. não permitir o agravo contra decisões judiciais orais em audiência (não haverá mais agravo retido); 4. recusar o agravo em casos de decisões sobre prova ilícita ou emprestada. E, além de tudo isto, ainda teremos de suportar poder total dado aos juízes para inverter a ordem da produção das provas em franca agressão ao princípio do devido processo legal.


Como dissemos à revista Veja, há pouco mais de um ano, atualmente até em jogo de tênis existe agravo de instrumento com efeito suspensivo (o tenista tem 3 desafios por set), mas no processo civil brasileiro a palavra final sobre provas será exclusivamente do juízo monocrático sem qualquer possibilidade de impugnação efetiva. Conclusão: Ditadura do Judiciário à vista!

5ª advertência: Superpoderes cautelares também significam autoritarismo
Embora surgido em 1973, o Código de Processo Civil em vigor, apelidado de Código Buzaid, é profundamente democrático se comparado ao projeto em tramitação na Câmara, não apenas em matéria probatória, mas também em relação a medidas cautelares.


A eliminação do “Livro III – Do Processo Cautelar” representa a mais pura expressão do autoritarismo do projeto em curso, por pelo menos oito motivos:

1. Juízes poderão conceder medidas cautelares de ofício, fora dos casos legais expressamente previstos;
2. Não haverá mais ações cautelares incidentais, o que vai transformar todas as postulações cautelares em incidentes no próprio curso do processo de conhecimento (ou execução) com clara perspectiva de comprometimento do andamento da causa;
3. Não haverá mais necessidade de “prova literal de dívida líquida e certa” para o arresto, o que colocará nosso patrimônio em risco;
4. Não haverá mais a necessidade de dois oficiais de Justiça para cumprir busca e apreensão;
5. Não serão mais necessárias duas testemunhas para realizar arrombamento;
6. Não serão necessários dois peritos para atestar contrafação;
7. Não existirá mais procedimento para o arrolamento, o que nos submeterá à livre interpretação judicial sobre o que é, ou para que serve, tal medida cautelar;
8. Desaparece o procedimento da “caução”, o que também empobrecerá o nosso direito processual civil.

6ª advertência: Juízes poderão antecipar a tutela sem “prova inequívoca” e sem “periculum in mora”. Porta aberta ao arbítrio
A grande arbitrariedade que marca o projeto de CPC igualmente se revela pelos poderes incomensuráveis atribuídos aos juízes de primeiro grau para conceder tutela antecipada (“Tutela de Evidência” talvez seja o título da figura processual que nos espera). Não haverá mais a necessidade de “prova inequívoca”, nem de “periculum in mora” como requisitos para a concessão de antecipação. Bastará um documento qualquer (“suficiente”), desde que o réu não traga outro documento com a mesma força, sem necessidade de “periculum”. Ou, ainda, bastará que a postulação do autor venha amparada em Súmula Vinculante ou julgamento de casos repetitivos para que fique autorizada a antecipação.


A arbitrariedade a que nos referimos é porque, com tantas possibilidades na lei, julgamentos imediatos por liminares, ou antecipados ao direito de provar, ocorrerão aos milhares, sem limitações importantes. Razão pela qual também o agravo de instrumento não será capaz de corrigir, já que será a própria lei processual que não exigirá mais “prova inequívoca” (a prova de forte capacidade de convencimento), nem “periculum” (o perigo de dano sério demonstrado pelo autor). Estaremos todos à mercê de julgamentos imaturos de juízes singulares.

7ª advertência: Apelação por instrumento para dificultar ao máximo a vida da parte que quer recorrer
Outro lado claro da insensibilidade do projeto de CPC é a apelação por instrumento que vai dificultar o exercício do direito de recorrer e, com ele, o exercício do próprio direito de defesa. Imagine-se o tamanho do problema com que terão de lidar muitos milhares de advogados do Brasil para reproduzir centenas de peças dos autos, de sorte a poder enviá-las ao tribunal junto com seu recurso. 


Mas por que tanto endurecimento? As razões por trás do autoritarismo são simples:


1. Para que se imponha à parte a ideia de que uma única decisão é suficiente;
2. Para que se pense duas vezes antes de recorrer, porque quem recorre é provavelmente “litigante de má-fé”;
3. Para que as execuções provisórias fiquem facilitadas;
4. Para que, assim, diminuam os recursos, o trabalho dos tribunais e o número de processos acumulados. Os ideais de justiça ficam simplesmente postos de lado!

8ª advertência: Autoritarismo patente no desaparecimento do efeito suspensivo da apelação
Num país onde, de cada dez sentenças proferidas, quatro ou cinco são reformadas pelos tribunais, não se pode eliminar o efeito suspensivo da apelação como regra geral do processo civil. No quadro atual, a eliminação da suspensividade da apelação é proposta irresponsável, insensível e injusta sob qualquer ângulo.


O que precisamos é aparelhar melhor o Judiciário para que uma apelação seja julgada em alguns meses, e não em alguns anos. Afinal de contas, a maioria dos brasileiros certamente ainda pensa que duas decisões legitimam mais a execução do que apenas uma. E, por outro lado, não há quem não deseje ardentemente uma “segunda opinião” se a primeira lhe é desfavorável em qualquer sentido da vida.

Esse é o sentimento comum do nosso povo que não deve ser desprezado quando se pensa em reforma do processo civil. Recorrer sem ser executado é o que se espera de um processo minimamente justo e democrático num país como o nosso. Fôssemos como a Alemanha, a França ou a Suíça, poderíamos cogitar a eliminação do efeito suspensivo da apelação, mas, como somos o Brasil, não devemos.

Não se pode subtrair dos demandados – pessoas físicas ou empresas – o legítimo direito de tentar reverter decisões desfavoráveis proferidas por um único magistrado, quase sempre assoberbado e apressado. Eliminar o efeito suspensivo é uma agressão ao princípio do duplo grau de jurisdição, um atentado ao Estado Democrático de Direito. É desejar de fato e de verdade criar o totalitarismo judicial entre nós.

Antônio Cláudio da Costa Machado é advogado e professor de Teoria Geral do Processo e Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da USP, professor de pós-graduação da Faculdade de Direito de Osasco, coordenador de Direito Processual Civil da Escola Paulista de Direito, mestre e doutor em Direito pela USP.

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