quarta-feira, 17 de julho de 2013

SOBRE O SAIRÉ , “ÇAIRÉ” ou "TURYUA"...

(Todas as grafias acima estão corretas)

Pe. Sidney Augusto Canto (*)

Recentemente o Conselho Comunitário da Vila de Alter do Chão aprovou o uso da grafia “Çairé” para o evento que ocorre a cada ano naquela Vila. Mesmo sabendo que o tema é apaixonante do ponto de vista político (“Ç” para os partidários de um governo e “S” para os de outro), quero aqui discorrer sobre o caráter HISTÓRICO da grafia.

Quando os portugueses chegaram à Amazônia havia diversos povos e tribos indígenas, cada uma com sua “LÍNGUA” própria. Os índios apenas FALAVAM, mas não escreviam, visto que toda a sua tradição se fazia de maneira ORAL. Para facilitar a COMUNICAÇÃO por parte dos religiosos com os índios, os JESUÍTAS criaram uma LÍNGUA GERAL, conhecida como NHEENGATU. Esta “língua geral” servia para comunicação entre os padres e seus catequisados. Era incompreendida para os colonos, que mal sabiam ler e escrever em português. A língua geral servia, portanto, para CONFUNDIR os COLONOS e facilitar a COMUNICAÇÃO dos índios com os PADRES.

Ora, conhecer a língua e dominá-la indica posse do poder... Isso não agradava a Corte portuguesa que, por meio de cartas régias, obrigavam os padres a ensinar a língua portuguesa nas Missões. A lei era desobedecida até a chegada de Mendonça Furtado à Amazônia. O mesmo reclamou ao seu irmão (leia-se “Pombal”), que os padres dificultavam o diálogo com os índios usando do Nheengatu  desprezando a língua portuguesa. Resultado: Jesuítas expulsos e obrigatoriedade de se ensinar português a todos os índios da Colônia. Com isso grande parte da cultura dos povos locais (inclusive as dos Boraris) recebeu quase que uma sentença de morte. O Sairé se mostrou então como uma resistência a esse golpe, pois as cantigas ainda eram feitas em Nheengatu...

Podemos ver, assim, que a problemática de como se escreve a palavra Sairé não é moderna. Sobre a grafia na língua geral dos índios, passo a transcrever o que diz Ermano Stradelli em sua Gramática de Nheêngatú, publicada em 1928 na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (possuo uma cópia a que frequentemente eu recorro): “O Nheêngatú ou língua geral se escreve foneticamente com 19 letras, a saber: A,B,C,D,E,G,H,I,K,M,N,O,P,R,S,T,U,X,Y. Comparado ao alfabeto português faltam-lhe sete letras, isto é, Ç,F,L,J,Q,V,Z. O Ç, profusamente empregado pelos nossos antecessores, é afinal um S, e a pronúncia de quem fala o nheêngatú, como língua aprendida dos lábios maternos, não autoriza a distinção de pronúncia que pressupõe o uso de sinais diferentes”. Ou seja, para quem estuda e conhece nhêengatú sabe que a grafia “Çairé” não existe, nem na língua geral e nem como português exato.

Mas se tratando da língua tupi, a grafia é aceita, contanto que se escreva sublinhada, ou aspeada, ou em negrito (esta são as normas da ABNT, que valem para as línguas não oficiais do nosso país que adota SOMENTE o PORTUGUÊS como língua oficial). Aliás, essa introdução do “Ç” em forma inicial na língua tupi se deve ao naturalista Barbosa Rodrigues, que a introduziu no final do século XIX. Antes do século XIX não existia o “Ç” nem sequer no TUPI. Ou seja, as duas formas são corretas contanto que se usem as devidas referências preferenciais do termo, ou seja, se em português ou nheengatu, é com “S”, se na língua tupi, é com “Ç”.

Além disso, vale a pena lembrar o que diz Ladislau Baena sobre o Sairé de Belém: Na noite de Natal e na véspera e dia da festa, que é uma das oitavas, o juiz e a juíza caminham à Catedral precedidos do Toriua, a que outros chamam Sairé: o qual é um semicírculo de cipó de seis palmos de diâmetro quadripartido com uma cruz, e um espelho em cada uma dessas partes e outra cruz no meio da periferia”. Toriua, ou Turyua” que quer dizer (conforme Barbosa Rodrigues): “Alegria”.

Como eu disse em uma postagem recente nas redes sociais: “qualquer estudante de História sabe disso”. O problema, portanto, parece ser muito mais de caráter político. Sendo assim, parece que novamente se faz a lei do mais forte, que já impuseram à cultura indígena um verdadeiro MASSACRE. Até mesmo o fato do índio ESCREVER foi uma IMPOSIÇÃO portuguesa que ainda hoje alguns dos “dominadores” atuais insistem em introduzir e conservar, ao invés de simplesmente deixarem fluir a antiga tradição oral que havia, sem escrita e mesmo assim entendida...

Enfim, as DUAS GRAFIAS são corretas, contanto que se obedeçam as NORMAS GRAMATICAIS em vigor. Concordo até com meu amigo, historiador Paulo Lima, que a ABNT deveria considerar o TUPI como uma língua “oficial”, aliás, deveria considerar cada língua indígena de nosso país como OFICIAL para aquele grupo de brasileiros que falam diferente da maioria...

E, para encerrar, ao invés de fazerem tanto “BA-FÁ-FÁ” em torno da grafia, deveriam era discutir e lutar para melhor valorização da cultura de fato NATIVA, para melhor valorização da história e da vida de nossos índios, para buscar de novo o SAIRÉ/ÇAIRÉ/TURYUA em sua forma mais original possível: algo que em sua essência nada mais é do que “SALVE” e “ALEGRIA” e que, numa tradução livre pode simplesmente ser: Saudemos a Alegria, Saudemos!

* Presbítero da Diocese de Santarém, é membro da Academia de Letras e Artes de Santarém (ALAS) e presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós – IHGTap.
 

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