quarta-feira, 9 de julho de 2014

“O novo CPC não é uma revisão do Código de 1973. É muito diferente”

Mudança ampla
Embora seja membro da comissão formada para reformar o novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados, o advogado e professor baiano Fredie Souza Didier Junior (foto) não concorda que o novo CPC seja uma mera revisão do Código de 1973, ainda em vigor. "Quem examinar o texto verá que isso não é verdade”.
Em entrevista à revista Consultor Jurídica, ele conta as dificuldades enfrentadas durante a elaboração do CPC. Ele diz que o maior desafio foi contemplar o maior número de sugestões, sem criar “monstros normativos”.
No entendimento dele, não é possível afirmar se o novo código será ou não conservador. “Os grandes temas, a partir dos quais podemos avaliar, se uma lei é conservadora ou não, não passam pelo CPC.”, frisou.
Aos 39 anos, Fredie Didier é doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e livre-docente pela Universidade de São Paulo. Autor de mais 40 livros jurídicos, além de advogar, é professor na Universidade Federal da Bahia.
ConJur — Apesar do calendário apertado do Congresso por causa das Copa do Mundo e das eleições, o senhor acredita que o projeto do novo Código de Processo Civil será votado e sancionado ainda este ano? Fredie Didier — Acredito que sim. Há um consenso sobre a necessidade de termos um novo Código de Processo Civil. Como não há mais obstáculos políticos e a pauta é positiva para o Congresso Nacional, tenho quase certeza que será votado e sancionado ainda neste ano. Ao que tudo indica a votação acontecerá no dia 16 de julho, no Senado Federal.
ConJur — E já entra em vigor no próximo ano?
Didier —
É um ano de vacatio. O novo Código entra em vigor um ano depois do dia em que for publicado. Imagino que no início de agosto do próximo ano, se for aprovado no dia de 16 de julho.
ConJur — O senhor tem dado palestras para contar algumas das curiosidades sobre a tramitação do projeto do novo CPC na Câmara dos Deputados. Que curiosidades são essas?
Didier —
Existem várias peculiaridades do processo legislativo que merecem ser divulgadas para que as pessoas possam compreender como é que se elabora uma lei. A democracia tem a sua delícia e a sua dor. Então, há diversas situações, desde negociações com movimentos populares até o convencimento de parlamentares em torno de questões técnicas. No final das contas, a minha impressão da tramitação foi muito positiva. Pude ver os diversos setores da sociedade se manifestando e opinando.
ConJur — Houve uma pressão de grupos de interesses?
Didier —
Houve muitos. Desde os trabalhadores do Movimento Sem Terra, que reivindicavam um regramento mais adequado das ações possessórias, até a Confederação Nacional da Indústria, preocupada com aspectos relacionados às atividades empresarias. Todo grupo de interesse tem legitimidade para apresentar suas propostas no Parlamento, que serve justamente para ouvir os diversos tipos de demandas da sociedade. De alguma maneira, o novo Código conseguiu atender todas as categorias. Ninguém foi atendida completamente, mas de algum jeito foram acolhidas. Por isso, que o código foi aprovado por unanimidade na Câmara.
ConJur — Os cartórios foram bem representados? Didier — Sim. Os cartórios tiveram uma atuação muito séria, focaram bem nos interesses deles. Houve muita coisa que não foi acolhida, mas algumas foram atendidas. Coisas boas. O registro de imóvel, por exemplo, passou a ter um papel muito importante no que diz respeito à segurança das transações imobiliárias. Acabando com as dúvidas que existiam. Por exemplo: se a pessoa compra um imóvel e no registro não há nenhum tipo de restrição, como a pendência de um processo ou penhora registrada, ela adquire agora com tranquilidade. Isto sempre foi um problema. O código tomou uma posição sobre isto, agilizando as negociações de financiamentos imobiliários.
ConJur — O novo Código será menos conversador do que o vigente? Didier — O novo Código avança ao mencionar, pela primeira vez, a união estável, expressando e dando o mesmo tratamento processual do casamento. O CPC atual não cita, pois a união estável foi regulamentada depois da Constituição de 1988. Houve no Congresso, no entanto, uma discussão sobre a sobrevivência do estudo da separação no Brasil. A partir da Emenda Constitucional 66, houve quem defendesse a inexistência da figura da separação judicial no país. Ou seja, quem quisesse terminar com casamento não precisaria mais separar para depois divorciar. Na primeira versão do Senado, a separação não estava mencionada no código. Por pressão da bancada religiosa na Câmara, a separação voltou ao texto, pois a mesma entende que ainda é uma opção. Para muitas pessoas, o casamento tem que ser único. Com a separação, a pessoa deixa de ser cônjuge, mas o casamento só termina com o divórcio. Aí pergunto: isto é ser mais ou menos conservador?  Não dá para fazer um juízo sobre isto, porque estas questões de moralidade não permeiam o CPC. Não há nada no código que diga se é ou não conservador. Os grandes temas, a partir dos quais podemos avaliar, se uma lei é conservadora ou não, não passam pelo CPC. Certamente, será mais impactante no âmbito do Código Penal que discutirá aborto, eutanásia, por exemplo.
ConJur — Houve algum ponto da reforma aprovado na Câmara que o senhor discordou?
Didier —
Sim. Fui radicalmente contra a restrição que fizeram a penhora online em tutela antecipada. A Câmara aprovou um texto que impede, na execução de uma tutela antecipada, o juiz determinar o bloqueio online de dinheiro. Este bloqueio é uma das técnicas mais efetivas do processo brasileiro utilizada há muitos anos. Isto é muito ruim, por exemplo, para as ações de improbidade administrativa, que normalmente se tem uma tutela antecipada para bloquear os bens do investigado, inclusive, as aplicações financeiras. Sem a possibilidade de penhora online fica muito difícil. Acredito que haverá uma mudança no Senado.
ConJur — Qual foi o maior desafio para o senhor durante a elaboração do novo Código?
Didier —
O maior desafio foi construir uma solução normativa que agradasse a todos ou desagradasse pouco a todos, atendendo aos interesses sem criar “monstros normativos”. Não se consegue, em ambiente democrático, dar uma guinada de 180° de uma hora para outra. Todo discurso, que prega uma guinada de 180°, rapidamente, tem uma forte carga autoritária. Não se sai de um ponto ao aposto na democracia sem resistência e sem diálogo.
ConJur — Acha que ponto do novo CPC poderá ser questionado em sua constitucionalidade? Didier — Só vou poder dizer quando o texto final sair.
ConJur — Alguns processualistas afirmam que o novo CPC não passa de um aperfeiçoamento do Código de 1973. O senhor concorda?
Didier —
Isto aí é difícil até de rebater, basta ler para ver que não é. É uma crítica tão inconsistente. Não é o Código de 1973 revisado, é outro código. Muito diferente. Mudamos desde coisas pequenas até coisas muito significativas, como a ampliação da autonomia privada no processo, tentamos acabar com a jurisprudência defensiva, por exemplo. São tantos aspectos significativos e diferentes que é difícil rebater. Me parece que essa crítica é absolutamente superficial, feita por quem não examinou. Quem examinar o texto verá que isso não é verdade. 
ConJur — Houve uma redução do prazo do poder público recorrer?
Didier —
Sim, mas é pouco significativa. O prazo de contestação que diminuiu de quatro vezes para o dobro.
ConJur — Isto não compromete o direito à ampla defesa do poder público, que tem um volume grande de processos?
Didier —
Não, porque o prazo passa a contar, apenas, os dias úteis. Logo, vinte dias de prazo, por exemplo, equivalerá a quase trinta.
ConJur — Mas trinta não é o dobro.
Didier —
Não é o dobro, mas é pouco significativo. Tanto que não houve nenhuma oposição do poder público. Não haverá injustiça.
ConJur — O artigo 12 do novo Código de Processo Civil diz que deve ser adotada a ordem cronológica de julgamentos, em prolação de sentenças e acórdãos. Os casos mais graves não deveriam ter prioridade?
Didier —
Isto não é um problema, porque se a situação for grave, cabe tutela antecipada, que está fora da ordem cronológica. A cronologia é para proferir decisão final. O problema são os casos mais fáceis não poderem ser decididos logo, porque estão fora da ordem.
ConJur — E como podemos resolver esta questão?
Didier —
Se tentou com a criação de algumas exceções. Uma delas é a aplicação de uma tese vinculante em um grupo de processos. É como se a lei dissesse: “isto aqui é tão simples que pode furar a fila”.
ConJur — A mediação deve ser obrigatória?
Didier —
Em caso de família, sim. Nos demais casos, tem que ser, em princípio, um indicativo. Mas, se ambas as partes não quiserem, não tem porque impor.
ConJur — O julgamento do mensalão interferiu no novo Código de Processo Civil?
Didier —
Acredito que sim. O julgamento do mensalão foi contemporâneo à tramitação do novo CPC na Câmara. E houve uma percepção por parte dos parlamentares de que era preciso reduzir os poderes dos juízes. Eles, claramente, passaram a ter outra postura em relação ao poder do magistrado.
ConJur — O ministro do STF, Luís Roberto Barroso, disse, recentemente, que o acesso facilitado ao Supremo atrasa a Justiça. O senhor concorda?
Didier —
É difícil opinar sem dados. De fato, no Brasil, o cidadão pode ir ao Supremo pelo recurso extraordinário, alegando qualquer tipo de violação a Constituição, desde que tenha repercussão geral. Tenho dúvidas em dizer que isto seja ruim.
ConJur — Por quê?
Didier —
Porque no final das contas é bom ter um instrumento em que qualquer cidadão possa provocar o Supremo. Acho que o problema da Justiça não é este. Tanto que os dados recentes mostram que o Supremo tem diminuído o número de processos recebidos, por conta da súmula vinculante, do recurso repetitivo e da repercussão geral. Estes três instrumentos fizeram com que o Supremo passasse a administrar melhor os seus processos. De modo que, hoje, se tem menos processos entrando do que saindo.
ConJur — O texto prevê que juízes e tribunais devem seguir a jurisprudência do STF, em matérias constitucionais e do STJ, em outros temas. Se não houver doutrina em tribunais superiores, a primeira instância deve seguir a segunda. Isso não limita atuação do magistrado de primeiro grau?
Didier —
Acho que não. Por duas razões, primeiro porque sempre caberá ao juiz dizer se o caso merece ou não a aplicação daquele entendimento [dos tribunais superiores]. E, segundo, porque sempre será possível superá-lo, desde que haja novo argumento. O que não dá é para um juiz, diante de um entendimento já consolidado nos tribunais superiores, sem razões novas de superação e sem distinção, deixe de aplicar a jurisprudência, porque pensa diferente. Isto é simplesmente inadmissível. O cidadão será tratado com desigualdade, forçando a recorrer e a gastar mais dinheiro.
ConJur — Isso, então, valoriza a primeira instância?
Didier —
Valoriza as decisões judiciais. Os cidadãos poderão confiar mais na Justiça. Se estou numa situação semelhante à de outra pessoa, seremos tratados da mesma maneira. Para o bem, ou para o mal, perdendo ou ganhando. O que não pode é ser uma loteria, como é hoje.
ConJur — Qual é o papel do juiz atual?
Didier —
O papel do juiz é dá significado ao texto normativo. O julgador é um dos sujeitos que contribuem para a construção do Direito, junto com os legisladores, os advogados e os doutrinadores. Quando o juiz diz que a dignidade da pessoa humana impõe que a sociedade trate como família um relacionamento homoafetivo, ele construiu o Direito a partir da Constituição. Então, o papel do julgador é reconstruir o Direito fundamentado nos textos normativos.
ConJur — O Brasil tem se aproximado do sistema common law?
Didier —
Não. O Brasil tem a sua própria tradição, que nunca será a do sistema common law. O fato do Direito brasileiro prestigiar os precedentes não significa que está se “commonlawzando”. A tradição de respeito aos precedentes no Brasil é antiga. Não com a força atual. Já falamos de súmula no nosso país há 60 anos. Em 1933, na Era Vargas, havia um decreto-lei que impunha a observância aos precedentes do Supremo. Uma coisa é respeito aos precedentes, outra coisa é ser common law.
ConJur — O senhor concorda com o juiz Oliver Holmes, da Suprema Corte americana, quando diz que o Direito é aquilo que o Supremo diz o que é? Didier — É uma frase retumbante. Há muito de verdade nisto, mas não pode ser utilizada para entender que o Judiciário faz o que quer. Isso é inadmissível. O Judiciário reconstrói o Direito, a partir dos textos normativos.
ConJur — Recentemente, o ministro do STF, Teori Zavascki, mudou sua decisão em apenas 24 horas, no caso da operação lava jato. Isso não cria insegurança jurídica?
Didier —
A possibilidade de superação de um entendimento, ao lado da distinção do caso, são as duas válvulas de escape do sistema de precedentes para impedir o enrijecimento. Se me perguntarem: é possível superar um entendimento? É. Desde que se dê a esta decisão uma motivação adequada. Apresente as razões pelas quais esta superação de justifica. Desprezar um entendimento anterior não é bom. Isso cria insegurança jurídica.
ConJur — Como o senhor avalia a presidência do ministro Joaquim Barbosa a frente do Supremo Tribunal Federal, que pediu aposentadoria antecipada? Didier — Não tenho dados para examiná-lo como presidente do Supremo. O que se pode dizer é que ele exerceu um papel importante na história.  É preciso ter certo distanciamento histórico para avaliarmos corretamente. Ainda há muita emoção. Ele, claramente, exagerou e foi intempestivo em algumas situações. Mas acho que a história dará a ele um tamanho maior do que algumas pessoas têm atribuído.
ConJur — O atual sistema de escolha de ministro do Supremo deve ser mudado?
Didier —
Não. Para mim, em hipótese alguma. Este é o melhor sistema construído até hoje. Se fizer um balanço histórico dos ministros do Supremo que foram nomeados, há mais ministros bons do que maus ministros. É muito difícil para o presidente da República escolher mal, porque ele é fiscalizado pelo país.

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