domingo, 31 de agosto de 2014

"Bullying" no Código Penal: aberração atrás de aberração

Publicado por Avante Brasil 

O portal JusBrasil informou que “A Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado aprovou, no dia 20/8/14, proposta que inclui no Código Penal o crime de intimidação vexatória (ou bullying). A proposta será analisada agora pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Depois, seguirá para o Plenário”.
Re mellius perpensa: logo após a discussão do novo CP (2012) cheguei a pensar (e escrever) que seria uma boa medida política-criminal incluir o delito de bullying no CP. Melhor meditando sobre o assunto, hoje vejo essa iniciativa como uma aberração sem tamanho (é incrível como em alguns momentos a senilidade patológica invade nossa cabeça).
É uma aberração jurídica a proposta porque todos os fatos compreendidos no bullying já estão tipificados nas leis penais (morte, ameaça, injúria, calúnia, furto, lesão corporal etc.). Logo, não é por falta de lei que o gravíssimo problema do bullying (que atinge mais de 5 milhões de crianças e adolescentes por ano no Brasil – veja nosso livro Bullying, Saraiva) não tem sofrido redução.
Uma das mais graves doenças do nosso país é a falta de certeza da lei (falta de império da lei). Diante da ausência dessa certeza da lei penal, o legislador, do alto de sua impotência crônica e da sua demagogia sistemática, faz de conta que vai resolver os problemas sociais com a mera aprovação de uma nova lei penal (pedida pela população brasileira totalmente desnorteada diante do quadro agudo de violência do país). Entre as promessas que o legislador faz e a realidade há muita embromação.
Os humanos, diz o filósofo Savater (Ética de urgência, p. 119), “somos maus o quanto nos deixam ser. Se alguém acredita que pode fazer algo e alcançar alguma vantagem, se está completamente seguro de que nada vai ocorrer, pois o fará”. Com ressalva dos abolicionistas, a repressão (desde que justa e proporcional) continua sendo defendida no campo do poder punitivo (é da tradição moral ocidental).
Na prática brasileira, no entanto, essa reprovação ocorre em poucos casos. Diante da falência do estado repressor (da certeza do castigo), que conta com capacidade bastante reduzida para fazer frente à criminalidade, algo (substitutivo) tem que ser inventado (ou a sociedade entra no caos absoluto). Esse alto foi inventado: se chama populismo penal.
É um discurso e uma prática onde todos enganam ou se autoenganam. Puro estelionato (na sua quase totalidade). A população pede mais rigor penal (mais efetividade da lei) e o legislador entrega outro produto, o falso: aprova novas leis penais. A irracionalidade é brutal: as leis atuais não são cumpridas, logo, para solucionar o problema vamos aprovar novas leis penais. Sem pé nem cabeça!
Nosso Código Penal de 1940, na esteira desse populismo charlatão, já foi reformado 155 vezes (da data do Código até 2014). Nenhum crime, a médio prazo, diminuiu.
Mais de 280 pessoas são massacradas por dia no Brasil (126 no trânsito e 157 assassinadas). O fracasso da política populista do legislador penal demagogo, nas últimas 7 décadas, está estampado na realidade: 2 milhões e 300 mil pessoas perderam a vida no trânsito ou por causa das mortes intencionais (dolosas). Mais de 2 milhões de cadáveres e os números continuam aumentando. A única verdade na criminologia é a realidade. E a realidade dos cadáveres é incontestável (Zaffaroni). A política do populismo penal demagógico é ineficaz.
Diante desses números escabrosos, como é possível ainda encontrar adeptos uma política tão parcial (porque só repressiva) quanto ineficaz? Como pode, em pleno século XXI, uma política pública tão questionada (a do populismo penal), fundada exclusivamente no senso comum da dura repressão, continuar com tantos admiradores? Como é possível que os legisladores, apesar do fracasso da política reativa isolada, continuem fazendo a mesma coisa (edição de novas leis), do mesmo jeito (leis cada vez mais duras), durante as últimas 7 décadas?
Seria a força dramatizadora da mídia a responsável por isso? Seria a instrumentalização eleitoral do poder punitivo o centro desse fenômeno? Seria a ingenuidade da população? Como ainda existem pessoas que acreditam no mito preventivo da política repressiva desacompanhada de medidas preventivas eficazes? Por que tudo isso ainda acontece no nosso país, sem perspectiva de mudança? Se se tratasse de uma doença grave, que estivesse dizimando a população, claro que o povo não deixaria prosperar a mesma política errada. Por que, no campo criminal, isso acontece?
Por que os parlamentares de hoje pensam da mesma forma que os parlamentares das décadas de 40, 50? Por que a mídia de hoje (no campo criminal) é a mesma (na sua essência) desse período histórico? O que estaria por detrás da durabilidade do mito repressivo, que promete resultados mágicos nunca alcançados (a diminuição da criminalidade)? Que tipo de fanatismo que está cegando a população estaria por detrás de tudo isso? Por que não conciliar a repressão com a prevenção, priorizando esta, como aponta a ciência? Por que não copiar os países que alcançaram enorme sucesso em suas políticas preventivas (Canadá, Dinamarca, Suíça etc.)?
Por que neste setor o fogo das paixões (Durkheim) ainda não cedeu lugar para o primado da razão (como sugeria Hobbes, Kant etc.)? Teria razão Nietzsche (Genealogia da moral) ao sinalizar que por detrás de tudo estaria uma tradição moral vingativa da cultura judaico-cristã? Como explicar, diante de tanto fracasso da política puramente repressiva, que a opinião pública (midiatizada) continue acreditando que a solução para nossos problemas reside em punir mais e castigar melhor (veja Gutiérrez, 2006, p. 20)? O progresso viria da distribuição de mais dor e mais sofrimento (verberado por Christie, no livro Los limites del dolor)!
Como conquistam legitimação rápida as falsas propostas repressivas penais? Isso ocorreria porque elas compreendem, defendem e exacerbam os sentimentos de vingança e de medo de grande parcela da população? Será que, como diz Mead, a população não estaria, por detrás das reações violentas, fugindo da sua responsabilidade de descobrir as soluções dos seus problemas? (apud Gutiérrez, 2006, p. 24). As pistas dadas por Nietzsche, Mead, Christie, Durkheim e tantos outros não deveriam ser bem investigadas?
No campo do controle da criminalidade poderíamos estar num paraíso. Mas continuamos mergulhados num inferno profundo. Nos encontramos (nessa área) naquela situação miserável descrita por Hobbes (Leviatã, capítulo XIII), com uma grande diferença: não mais a natureza (adversa) é a causadora da desgraça, sim, a nossa desastrada urbanização e nossas elites governantes e dominantes. A cada dia nos aprofundamos mais na escuridão do desespero. A saída é fazer uso da razão e das paixões que levam à paz (Hobbes). Mas esse não tem sido o caminho trilhado pelo Estado e pela sociedade, nem tampouco pelo legislador penal. Que seguem e insistem na política da guerra, que persegue o inimigo para promover a vingança.
Desde 1937 (Estado Novo), passando pelo Código Penal de 1940 e pelas 155 reformas penais até 2014, no Brasil só temos conseguido oferecer uma “solução” enganosa para o problema da criminalidade: edição de novas leis penais, cada vez mais duras, e encarceramento massivo abusivo (incluindo criminoso não violento). Verdadeiro populismo punitivo charlatão. Essas reformas penais costumam produzir efeito positivo efêmero logo após a sua aprovação, quando produzem, mas em seguida a criminalidade volta com toda intensidade.

Fonte: JusBrasil.

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